Os dedos magros da pobreza

QUANDO EU LANCEI o problema a Tio Edmundo, ele o encarou com
seriedade.
— Então, é isso que preocupa você?
— É, sim senhor. Tenho medo que mudando de casa, Luciano não vá com a
gente.
— Você acha que o morcego gosta muito de você?
— Se gosta…
— Do fundo do coração?
— Nem tem dúvida.
— Então, pode ficar certo que ele vai. Pode ser que demore a aparecer, mas
um dia ele descobre.
— Eu já contei que rua e que número a gente vai morar.
— Pois então é mais fácil. Se ele não puder ir, porque tem outros
compromissos, ele manda um irmão, um primo, qualquer parente e você nem vai
notar.
Entretanto eu estava ainda indeciso. Que adiantava dar o número e a rua se
Luciano não sabia ler? Podia ser que ele fosse perguntando aos passarinhos, aos
louva-a-deus, às borboletas.,
— Não se assuste, Zezé, que morcego tem o senso de orientação.
— Tem o quê, titio? Ele me explicou o que era senso de orientação e eu
fiquei cada vez mais admirado com a sua sabedoria.
Resolvido o meu problema fui para a rua contar para todo mundo o que nos
esperava: a mudança. A maioria das pessoas grandes me dizia com um jeito alegre:
— Vocês vão mudar, Zezé? Que bom!… Que maravilha!… Que alívio!…
Só quem não estranhou muito foi Biriquinho.
— Ainda bem que é na outra rua. Fica pertinho da gente. E aquele negócio
de que eu lhe falei…
— Quando é?
— Amanhã, as oito, na porta do Cassino Bangu. O pessoal disseram que o
dono da Fábrica mandou comprar um caminhão de brinquedo. Você vai?
— Vou. Vou levar Luís. Será que eu ainda ganho?
— Claro. Um porqueirinha desse tamanho. Tá pensando que já é um home?
22
Chegou perto de mim e eu senti que era ainda bem pequeno. Menor do que
eu pensava ainda.
— Pois se eu vou ganhar… Mas agora eu tenho que fazer. Amanhã a gente se
encontra lá.
Voltei para casa e fiquei rondando Glória.
— Que é, menino?
— Você bem que podia levar a gente. Tem um caminhão que veio da cidade
entupidinho de brinquedo.
— Ora, Zezé. Eu tenho um mundão de coisas pra fazer. Tenho que passar,
ajudar Jandira a arrumar a mudança. Tenho que ver as panelas no fogo…
— Vem uma porção de cadetes de Realengo.
Além de colecionar pregando num caderno retratos de Rodolfo Valentino
que ela chamava de Rudy, ela tinha mania de cadete.
— Onde você já viu, cadete às oito horas da manhã? Quer me fazer de boba,
garoto? Vai brincar, Zezé.
Mas eu não fui.
— Sabe, Godóia. Não é por mim, não. Eu prometi a Luís que levava ele lá.
Ele é tão pequenininho. Criança nessa idade só pensa no Natal.
— Zezé, já disse que não vou. E isso é conversa: é você que está querendo ir.
Tem muito tempo para você ganhar Natal na vida…
— E se eu morrer? Morri sem ter ganhado esse Natal.
— Você não vai morrer tão cedo, meu velho. Vai viver duas vezes mais do
que Tio Edmundo ou seu Benedito. Agora, chega disso. Vá brincar.
Mas não fui. Fiz de um jeito que ela toda hora “esbarrasse” comigo. Ela ia na
cômoda pegar não sei o quê, dava comigo sentado na cadeira de balanço pedindo
com o olhar. Pedindo com o olhar fazia muito efeito nela. Ela ia pegar água no
tanque, eu estava sentado na soleira da porta, olhando. Ia no quarto apanhar peças
de roupa para lavar. Eu estava sentado na cama com as mãos no queixo, olhando…
Aí ela não se agüentou.
— Chega, Zezé. Já disse que não e não. Por amor de Deus, não fique me
atazanando a paciência. Vá brincar.
Mas eu não fui. Isto é, pensei que não ia. Porque ela me pegou, me carregou
porta a fora e me depositou no quintal. Depois entrou em casa e fechou a porta da
cozinha e a da sala. Não desisti. Fui ficando sentado defronte de toda janela que ela
ia passar. Porque agora ela estava começando a espanar a casa e arrumar as camas.
Ela dava comigo espiando e fechava a janela. Acabou fechando a casa todinha para
não me ver.
— Diaba ruim! Russa de mau pêlo! Tomara que você nunca se case com um
cadete! Tomara que você se case com um soldado raso, desses que não têm um
tostão para engraxar a perneira.
23
Quando vi mesmo que estava perdendo tempo, saí danado da vida e ganhei
de novo o mundo da rua.
Na rua descobri Nardinho brincando com uma coisa. Estava de cócoras
olhando, distraído da vida. Chequei perto. Ele tinha feito uma carrocinha de caixa
de fósforos e amarrado um besourão que nunca vira tão grande.
— Puxa!
— Grande, não é?
— Quer trocar?
— Por quê?
— Se você quiser figurinha…
— Quantas?
— Duas.
— Tinha graça. Um besouro desses e você só dá duas figurinhas.
— Besouro assim tem de monte no valão da casa de Tio Edmundo.
— Por três ainda troco.
— Dou três, mas não pode escolher.
— Assim, não. Pelo menos duas eu escolho.
— Tá bem.
Dei uma de Laura La Plante que eu tinha muitas repetidas. E ele escolheu
uma de Hoot Gibson e outra de Patsy Ruth Miller. Peguei o besouro, enfiei no
bolso e fui-me embora.


— Depressa, Luís. Glória foi comprar pão e Jandira está lendo na cadeira de
balanço.
Saímos nos espremendo pelo corredor. Fui ajudar ele a desaguar.
— Faz bastante que na rua ninguém pode fazer de dia.
Depois, no tanque, lavei o rosto dele. Fiz o mesmo e voltamos para o quarto.
Vesti ele sem fazer barulho. Calcei os seus sapatinhos. Porcaria esse negócio
de meia, só serve para atrapalhar. Abotoei o seu terninho azul e procurei o pente.
Mas o cabelo dele não sentava. Precisava fazer alguma coisa. Não tinha nada em
canto algum. Nem brilhantina, nem óleo. Fui na cozinha e voltei com um pouco de
banha na ponta dos dedos. Esfreguei a banha na palma da mão e cheirei antes.
— Num fede nada.
— Sapequei nos cabelos, de Luís e comecei a penteá-los. Aí a cabeça dele
ficou linda. Cheia de cachinhos que parecia um São João de carneirinho nas costas.
— Agora você fique em pé, aí, para não se amarrotar. Eu vou me vestir.
Enquanto enfiava as calças e a camisinha branca, olhava meu irmão.
— Como ele era lindo! Não havia ninguém mais bonito em Bangu.
24
Calcei os meus sapatinhos tênis que tinham que durar até quando eu fosse
pra Escola, no outro ano. Continuei a olhar Luís.
Lindo como estava e arrumadinho, dava até para confundir com o Menino
Jesus mais crescidinho. Aposto como ele vai ganhar presente pra burro. Quando
olharem ele…
Estremeci. Glória acabara de voltar e colocava o pão sobre a mesa. O papel
fazia aquele barulho nos dias que tinha pão.
Saímos de mãos dadas e nos postamos diante dela.
— Ele não está lindo, Godóia? Fui eu que arrumei. Em vez de se zangar, ela
se encostou na porta e olhou para cima. Quando abaixou a cabeça estava com os
olhos cheios d’água.
— Você está lindo também. Oh! Zezé!…
Se ajoelhou e tomou minha cabeça contra o seu peito.
— Meu Deus! Por que a vida há de ser tão dura para uns?…
Conteve-se e começou a nos arrumar direitinho.
— Eu disse que não poderia levar vocês. Não posso mesmo, Zezé. Tenho
tanto que fazer. Primeiro vamos tomar café enquanto penso alguma coisa. Mesmo
que quisesse não dava tempo de eu me arrumar…
Botou a nossa canequinha de café e cortou o pão. Continuava a olhar
aflitamente para nós dois.
— Tanta força para ganhar umas porcarias de uns brinquedos vagabundos.
Também eles não podem dar coisa muito boa pra tanto pobre que existe.
Fez uma pausa e continuou:
— Talvez seja a única oportunidade. Não posso impedir que vocês vão…
Mas, meu Deus, vocês são muito pequenininhos…
— Eu levo ele direitinho. Dou a mão o tempo todo, Godóia. Nem precisa
atravessar a Rio-São Paulo.
— Mesmo assim é perigoso.
— Não é, não, e eu tenho senso de orientação.
Ela riu dentro da sua tristeza.
— Quem ensinou isso agora?
— Tio Edmundo. Ele disse que Luciano tinha, e se Luciano que é menor que
eu tem, eu tenho mais…
— Vou falar com Jandira.
— É perder tempo. Ela deixa, sim. Jandira só vive lendo romance e pensando
nos namorados. Nem se importa.
— Vamos fazer o seguinte: acabem com o café e nós vamos para o portão.
Se passar gente conhecida que for para aquele lado, eu peço para acompanhar
vocês.
Nem quis comer pão, para não demorar. Fomos para o portão.
25
Não passava ninguém, só o tempo. Mas acabou passando. Lá vinha seu
Paixão, o carteiro. Cumprimentou Glória, tirou o quepe e se prontificou a, nos
acompanhar.
Glória beijou Luís e me beijou. Comovida, perguntou sorrindo:
— E aquele negócio de soldado raso e de perneira…
— É mentira. Não foi de coração. Você vai casar com um major de
aeroplano cheio de estrelinha no ombro.
— Por que vocês não foram com Totóca?
— Totóca disse que não ia lá. E que não estava disposto a rebocar
“bagagem”.
Saímos. Seu Paixão mandava a gente andar na frente e ia entregar carta nas
casas. Depois apressava o passo e pegava a gente. Tornava a repetir a ação,
seguidamente. Quando chegamos na Rio-São Paulo ele riu e falou:
— Meus filhos. Estou com muita pressa. Vocês estão atrasando o meu
serviço. Agora vocês vão por ali, que não tem perigo algum.
Saiu, apressado, com o maço de cartas e papéis debaixo do braço.
Pensei, revoltado.
— Covarde! Abandonar duas criancinhas na estrada depois de ter prometido
a Glória que levava a gente.
Peguei a mãozinha de Luís com mais força e continuamos a andar. O cansaço
começava a se manifestar nele. Cada vez diminuía os passos.
— Vamos, Luís. Está pertinho. Tem muito brinquedo. Ele andava um pouco
mais depressa e voltava a atrasar.
— Zezé, estou cansado.
— Vou carregar você um pedacinho, quer? Ele abriu os braços e o carreguei
um pouco. Arre que ele pesava como chumbo. Quando chegamos na Rua do
Progresso quem estava bufando era eu.
— Agora você anda mais um pedacinho.
O relógio da igreja bateu oito horas.
— E agora? Era para a gente estar lá às sete e meia. Mas não faz mal, tem
muita gente e vai sobrar brinquedo. Tem um caminhão cheio.
— Zezé, meu pé está doendo.
Abaixei.
— Vou desabotoar um pouco o cordão que melhora.
Íamos cada vez mais devagar. Parecia que o Mercado não chegava nunca. E
depois ainda tínhamos que passar a Escola Pública e virar à direita na Rua do
Cassino Bangu. O pior era o tempo que voava de propósito.
Mortos de cansaço, chegamos lá. Não havia ninguém. Nem parecia que
houvera distribuição de brinquedo. Mas houvera, sim, porque a rua estava cheia de
papel de seda amarrotado. A areia estava toda colorida de papel rasgado.
26
Meu coração começou a inquietar-se. Chegamos defronte e seu Coquinho
estava fechando as portas do Cassino.
Falei, afogueado, para o porteiro:
— Seu Coquinho, já acabou tudo?
— Tudo, Zezé. Vocês vieram muito tarde. Foi uma enchente.
Fechou meia porta e sorriu com bondade.
— Não sobrou nada. Nem para os meus sobrinhos. Fechou a porta toda e
veio para a rua.
— Ano que vem, vocês precisam vir mais cedo, seus dorminhocos!…
— Não faz mal.
Bem que fazia. Estava tão triste e decepcionado que preferia morrer a que
tivesse acontecido aquilo.
— Vamos sentar ali. A gente precisa descansar um pouco.
— Estou com sede, Zezé.
— Quando a gente passar no seu Rozemberg a gente pede um copo d’água.
Chega pra nós dois.
Só então ele descobriu toda a tragédia. Nem falou. Olhou pra mim, fazendo
beicinho e com os olhos boiando.
— Não faz mal, Luís. Você sabe o meu cavalinho Raio de Luar? Eu vou
pedir a Totóca mudar o cabo dele e dar de Papai Noel para você.
Mas ele fungou comprido.
— Não, não faça isso. Você é um rei. Papai disse que batizou você de Luís,
porque era o nome de rei. E um rei não pode chorar na rua, defronte dos outros,
viu?
Encostei a cabeça dele no meu peito e fiquei alisando o seu cabelo
encaracolado.
— Quando eu crescer vou comprar um carro bonito como o de seu Manuel
Valadares. Aquele do Português, você se lembra? Aquele que passou pela gente
uma vez na Estação quando a gente estava dando adeus para o Mangaratiba… Pois
bem vou comprar um carrão lindo daqueles cheio de presente e só para você… Mas
não chore que um rei não chora.
Meu peito explodiu numa mágoa enorme.
— Juro que vou comprar. Nem que tenha de matar e roubar…
Por dentro não era meu passarinho que comentava aquilo. Devia ser o
coração.
Só assim mesmo. Por que o Menino Jesus não gosta de mim? Ele gosta até
do boi e do burrinho do presépio. Mas de mim, não.
Ele se vingava porque eu era afilhado do diabo. Se vingava de mim,
deixando de dar presente ao meu irmão. Mas Luís, não merecia isso, porque era um
anjo. Nenhum anjinho do céu podia ser melhor do que ele…
27
Aí as lágrimas me desceram covardemente.
— Zezé, você está chorando…
— Passa logo. Mesmo eu não sou um rei, como você. Só sou uma coisa que
não presta pra nada. Um menino muito malvado, bem malvado mesmo… Só isso.


— Totóca, você tem ido na casa nova?
— Não. Você tem ido?
— Sempre que posso dou um pulo lá.
— Mas por que tudo isso?
— Quero saber se Minguinho está bem.
— Que diabo é Minguinho?
— É o meu pé de Laranja Lima.
— Você arranjou um nome que se parece muito com ele. Você é danado para
achar as coisas.
Riu e continuou a afinar o que seria o novo corpo do Raio de Luar.
— A ele está?
— Não cresceu nada.
— E nem cresce se você fica espiando o tempo todo. Está ficando bonito? É
assim que você queria o cabo?
— Era. Totóca por que você sabe fazer tudo, hem? Você faz gaiola,
galinheiro, viveiro, cerca, cancela…
— Isso é porque nem todo mundo nasceu para ser poeta de gravata de laço.
Mas se você quisesse mesmo aprendia.
— Acho que não. Para isso é preciso a pessoa ter “inclinação”.
Ele parou um instante e me olhou entre rindo e reprovando aquela possível
novidade de Tio Edmundo.
Na cozinha, Dindinha tinha vindo para fazer rabanada molhada no vinho. Era
a ceia de Natal. Era tudo.
Eu comentei para Totóca:
— E olhe lá. Tem gente que nem tem isso. Tio Edmundo foi quem deu o
dinheiro para o vinho e para comprar as frutas da salada do almoço de amanhã.
Totóca estava fazendo o trabalho de graça porque soube a história do Cassino
Bangu. Pelo menos Luís ia ganhar uma coisa. Uma coisa velha, usada, mas muito
linda e que eu gostava muito.
— Totóca.
— Fale.
— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel?
— Acho que não.
28
— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo
diz?
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você tem o diabo no
sangue.
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes
de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra
mim.
— Quem sabe se ano que vem… Por que você não aprende e não faz como
eu?
— E como é que você faz?
— Não espero nada. Assim a gente não fica desapontado. Mesmo o Menino
Jesus não é essa coisa tão boa que todo mundo fala. Que o padre conta nem que o
Catecismo diz…
Fez uma pausa e ficou indeciso se contava o resto do que pensava ou não.
— E como é então?
— Bem, vamos dizer que você foi muito levado, não mereceu. Mas Luís?
— É um anjo.
— E Glória?
— Também.
— E eu?
— Bem, você às vezes é… é… meio pegador das minhas coisas, mas é muito
bonzinho.
— E Lalá?
— Bate com muita força, mas é boa. Um dia vai costurar minha gravata de
laço.
— E Jandira?
— Jandira é daquele jeito, mas não é ruim.
— E Mamãe?
— Mamãe é muito boa; só me bate com pena e devagar.
— E Papai?
— Ah! Esse eu não sei. Ele nunca tem sorte. Eu acho que ele deve ter sido
como eu, o ruim da família.
— Pois então. Todo mundo é bom na família. E por que o Menino Jesus não
é bom pra gente? Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de
coisas. Na casa dos Villas-Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se
fala…
Pela primeira vez eu vi que Totóca estava quase chorando.
— Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis nascer pobre para se
mostrar. Depois Ele viu que só os ricos é que prestavam… Mas não vamos mais
falar disso. Pode ser até que o que eu falei seja um pecado muito grande.
29
Ele ficou tão abatido que nem quis mais conversar. Nem mesmo queria
levantar os olhos do corpo do cavalo que alisava agora.


Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu
em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba
nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com
ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento.
Papai pegou o chapéu e saiu. Saiu mesmo de tamancos, sem dar até logo nem
desejar felicidades. Acho que foi por isso que não deu boas-festas. Dindinha tirou o
lencinho e limpou os olhos e pediu para ir embora com Tio Edmundo. Tio
Edmundo botou uma pratinha de quinhentos réis na minha mão e outra na mão de
Totóca. Talvez ele quisesse dar mais e não tinha. Talvez ele quisesse em vez de dar
pra gente, estar dando para os seus filhos lá na cidade. Foi por isso que eu o
abracei. Talvez o único abraço da noite de festas. Ninguém se abraçou ou quis dizer
nada de bom. Mamãe foi para o quarto. Garanto que ela estava chorando
escondido. E todos estavam com vontade de fazer o mesmo. Lalá foi deixar Tio
Edmundo e Dindinha no portão e comentou quando eles se afastaram andando
devagarzinho, devagarzinho.
— Parece que estão velhinhos demais para a vida e cansados de tudo…
O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns
foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros.
Quando voltamos para dentro, Glória e Jandira lavavam a louça usada e
Glória tinha os olhos vermelhos como se tivesse chorado doído.
Disfarçou e disse para Totóca e eu:
— Está na hora de criança ir para a cama.
Ela falava isso e olhava para a gente. Ela sabia que naquele momento não
havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma
tristeza aos pedaços.
Talvez que a culpa de tudo tenha sido a luz do lampião meio mortiça que
substituíra a luz que a Light mandara cortar. Talvez.
Feliz era o Reizinho que dormia com o dedo na boca. Botei o cavalinho em
pé, bem perto dele. Não pude evitar de passar as mãos de leve em seus cabelos.
Minha voz era um rio imenso de ternura.
— Meu pequerrucho. Quando toda a casa estava às escuras eu perguntei
baixinho:
— Tava boa à rabanada, não estava Totóca?
— Nem sei. Não provei.
— Por quê?
30
— Fiquei com uma coisa entalada no gogó que não passava nada… Vamos
dormir. O sono faz a gente esquecer tudo.
Eu me levantara e fazia barulho na cama.
— Aonde você vai, Zezé?
— Vou botar meus tênis do lado de fora da porta.
— Não ponha, não. É melhor.
— Vou pôr, sim. Quem sabe, se não vai acontecer um milagre. Sabe, Totóca,
eu queria um presente. Um só. Mas que fosse uma coisa novinha. Só pra mim…
Ele virou para o outro lado e enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.


Mal acabei de acordar e chamei Totóca.
— Vamos ver? Eu digo que tem.
— Eu não iria ver.
— Pois eu vou. Abri a porta do quarto e os sapatinhos tênis estavam vazios
para a minha decepção. Totóca aproximou-se limpando os olhos.
— Não falei?
Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza.
Sem poder me conter exclamei:
— Como é ruim a gente ter pai pobre!…
Desviei meus olhos do tênis para uns tamancos que estavam parados à minha
frente. Papai estava em pé nos olhando. Seus olhos estavam enormes de tristeza.
Parecia que seus olhos tinham crescido tanto, mas crescido tanto que tomavam toda
a tela do cinema Bangu. Havia uma mágoa dolorida tão forte nos seus olhos que se
ele quisesse chorar não ia poder. Ficou um minuto que não acabava mais nos
fitando, depois em silêncio, passou por nós. Estávamos estatelados sem poder dizer
nada. Ele apanhou o chapéu sobre a cômoda e foi de novo para rua. Só então
Totóca me tocou no braço.
— Você é ruim, Zezé. Ruim como cobra. É por isso que…
Calou-se emocionado.
— Eu não vi que ele estava ali.
— Malvado. Sem coração. Você sabe que Papai está desempregado há muito
tempo. Foi por isso que ontem eu não podia engolir, olhando o rosto dele. Um dia
você vai ser pai e vai saber o quanto dói uma hora dessas.
Por mais, eu chorava.
— Mas eu não vi, Totóca, eu não vi…
— Sai de perto de mim. Você não presta pra nada mesmo. Suma!
Tive vontade de sair correndo pela rua e me agarrar chorando às pernas de
Papai. Dizer que fora muito mau, muito mau mesmo. Mas continuava parado, sem
31
saber o que fazer. Precisei sentar-me na cama. E de lá espiava os sapatinhos tênis
no mesmo canto, vazio de tudo. Vazio como o meu coração que flutuava sem
governo.
— Por que fui fazer isso, meu Deus? Logo hoje. Porque eu tinha de ser mais
malvado ainda quando tudo já estava tão triste. Com que cara eu vou olhar para ele
na hora do almoço? Nem a salada de frutas vai conseguir descer.
E os olhos grandes dele, como tela de cinema, estavam grudados me
olhando. Fechava os olhos e enxergava os olhos grandes, grandes…
Bati com o calcanhar na minha caixa de sapato e tive uma idéia. Talvez
assim Papai me perdoasse toda a maldade.
Abri a caixa de Totóca e apanhei emprestada mais uma lata de graxa preta
porque a minha estava no fim. Não falei com ninguém. Saí caminhando triste pela
rua sem sentir o peso da caixinha. Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos
dele. Doendo dentro dos olhos dele.
Era muito cedo e todo mundo devia estar dormindo por causa da Missa e da
Ceia. A rua estava cheia de crianças exibindo e comparando os brinquedos. Aquilo
me abateu mais. Todos eram meninos bons. Nenhuma daquelas crianças nunca
faria o que eu fiz.
Parei perto do “Miséria e Fome” esperando encontrar um freguês. O
botequim estava aberto até nesse dia. Não era à toa que tinham posto aquele apelido
nele. Vinha gente de pijama, de chinelos, de tamanco, mas sapato mesmo nenhum.
Não tomara nem café e não sentia nenhuma fome. Minha dor era muito
maior que qualquer fome. Andei até à Rua do Progresso. Rodei o Mercado. Sentei
na calçada da padaria de seu Rozemberg e nada.
As horas foram se ligando às horas e eu não conseguia nada. Mas tinha que
conseguir. Tinha.
O calor aumentou e a correia da caixa doía no meu ombro, sendo preciso
trocar a caixa de posição. Senti sede e fui beber na biquinha do Mercado.
Sentei no degrau da porta da Escola Pública que breve deveria me receber.
Botei a caixa no chão e desanimei. Encostei a cabeça nos joelhos como um boneco
e fiquei sem vontade de nada. Depois escondi o rosto entre os joelhos, cobrindo-o
com os braços. Era melhor morrer do que voltar para casa sem o que pretendia.
Um pé bateu na minha caixa e uma voz conhecida e amiga me chamou.
— Eh seu engraxate, quem dorme não ganha dinheiro. Suspendi o rosto sem
acreditar. Era seu Coquinho, o porteiro do Cassino. Colocou um pé e eu primeiro
passei o pano. Depois molhei o sapato e enxuguei. Depois é que comecei a passar a
graxa com cuidado.
— O senhor pode, por favor, levantar um pouco a calça.
Ele obedeceu ao pedido.
— Engraxando hoje, Zezé?
32
— Nunca precisei como hoje.
— E o Natal como foi?
— Foi regular.
Bati com a escova na caixa e ele trocou de pé. Repeti a manobra e comecei
então a lustrar. Quando acabei, bati na caixa e ele retirou o pé.
— Quanto, Zezé?
— Duzentos réis.
— Por que só duzentos réis? Todos cobram quatrocentos.
— Só quando eu for um bom engraxate mesmo é que posso cobrar tanto. Por
enquanto, não.
Apanhou quinhentos réis e me deu.
— O senhor não quer pagar depois? Eu não fiz nada até agora.
— Fique com o troco pro Natal. Até logo.
— Boas-festas, seu Coquinho.
Talvez ele tivesse vindo engraxar por causa do que acontecera três dias
antes…
O dinheiro no bolso me deu um certo ânimo que não durou muito; já passava
de duas horas da tarde, gente trançava pelas ruas e nada. Ninguém, nem para tirar o
pó e soltar um tostão.
Fiquei perto de um poste da Rio-São Paulo e soltava de vez em quando a
minha voz fina.
— Graxa, freguês!
— Graxa, patrão. Graxa para ajudar o Natal dos pobres!
Um carro de rico parou perto.
Eu aproveitei para gritar sem esperança alguma.
— Uma mãozinha, doutor. Só pra ajudar o Natal dos pobres!
A senhora bem vestida e os meninos atrás no carro ficaram me espiando,
espiando. A senhora se comoveu.
— Coitadinho, tão pequeno e tão pobrezinho. Dê qualquer coisa a ele, Artur.
Mas o homem me analisou, desconfiado.
— Isso é malandrinho e dos vivos. Ele está se aproveitando do tamanho e do
dia.
— Mesmo assim eu vou dar. Vem cá, menininho. Abriu a bolsa e esticou a
mão pela janela.
— Não, senhora, obrigado. Eu não estou mentindo, não. Só quem precisa
muito trabalha num dia de Natal.
Apanhei a caixa e coloquei no ombro e fui andando devagar. Hoje não tinha
nem mais força de ter raiva.
Mas a porta do carro abriu-se e um menininho desatou a correr para perto de
mim.
33
— Tome, garoto. Mamãe mandou dizer que ela não acredita que você seja
mentiroso, não. Botou mais quinhentos réis no meu bolso e nem esperou que
agradecesse… Só ouvi o ronco do motor se afastando.
Quatro horas já tinham passado e eu continuava com os olhos de Papai me
martirizando.
Fui procurando o caminho de volta. Dez tostões não davam, em todo caso
podia ser que o Miséria e Fome me fizesse mais barato ou me permitisse pagar o
resto outro dia.
Num canto de uma cerca uma coisa me chamou a atenção. Era uma meia
preta e furada de mulher. Abaixei e apanhei. Rodei ela na mão e ela ficou fininha.
Guardei a meia na caixa, pensando: “dá uma bela cobra”.
Mas briguei comigo mesmo. “Outro dia. Hoje, de jeito nenhum”…
Cheguei perto da casa dos Villas-Boas. A casa tinha um jardim grande e o
chão era todo cimentado. Serginho rodava entre os canteiros numa bela bicicleta.
Botei o rosto na grade espiando:
Era toda vermelha e com pedaços e riscos amarelos e azuis. O metal
alumiava de brilhante. Serginho viu e ficou se exibindo para mim. Corria, fazia
curvas, dava freada que chegava a chiar. Então se aproximou de mim.
— Gostou?
— É a bicicleta mais linda do mundo.
— Venha para perto do portão que você ainda vê melhor.
Serginho era da idade e da mesma aula que Totóca. Fiquei com vergonha dos
meus pés descalços porque ele calçava uns sapatos de verniz, usava meia branca e
ligas de elástico vermelho. O brilho do sapato refletia tudo. Até os olhos de Papai
começaram a me olhar no brilho. Engoli em seco.
— Que foi, Zezé? Você está esquisito.
— Nada. De perto ela é mais bonita. Você ganhou de Natal?
— Ganhei. Ele desceu da bicicleta para conversar melhor e abriu o portão.
— Ganhei foi coisa. Uma vitrola, três ternos, um monte de livros de
histórias, caixa de lápis de cor das grandes. Uma caixa com todos os jogos, um
avião que mexe a hélice. Dois barcos com vela branca…
Abaixei a cabeça e me lembrei do Menino Jesus que só gostava de gente rica
como Totóca falara.
— Que foi, Zezé?
— Nada.
— E você… ganhou muita coisa? Balancei a cabeça, negativamente, sem
poder responder.
— Mas nada? Nada mesmo?
— Esse ano não houve Natal lá em casa. Papai ainda está desempregado.
— Não é possível. Vocês nem tiveram castanhas, avelãs, nem vinho?…
34
— Só rabanada que Dindinha fez e café.
Serginho ficou pensativo.
— Zezé, se eu convidar, você aceita?
Estava adivinhando o que era. Mas mesmo sem ter comido nada não tinha
vontade.
— Vamos lá dentro. Mamãe faz um prato para você. Tem tanta coisa, tanto
doce…
Não me arriscava. Tinha sido muito judiado nesses dias. Por mais de uma
vez já tinha escutado:
— “Já não lhe disse para não trazer moleque de rua para dentro de casa?”
— Não, muito obrigado.
— Está bem. E se eu pedir a Mamãe para fazer um pacote de castanhas e
coisas para você levar para seu irmãozinho, você leva?
— Também não posso. Tenho que acabar de trabalhar. Serginho só então
descobriu a minha caixinha de engraxar onde me sentara.
— Mas ninguém engraxa no Natal…
— Eu passei o dia e só consegui ganhar dez tostões e assim mesmo cinco
deram de esmola. Tenho que ganhar ainda dois tostões.
— Para quê, Zezé?
— Não posso contar. Mas preciso muito mesmo.
Ele sorriu e teve uma idéia generosa.
— Quer engraxar o meu? Eu lhe dou dez tostões.
— Também não posso. Eu não cobro dos amigos.
— E se eu lhe der, isto é, se eu lhe emprestar os duzentos réis?
— Posso demorar a pagar?
— Como você quiser. Pode até me pagar depois em bola de gude.
— Assim, sim. Ele meteu a mão no bolso e me deu um níquel.
— Não se incomode que eu ganhei muito dinheiro. Estou com o cofre
cheinho.
Passei a mão na roda da bicicleta.
— Ela é linda mesmo.
— Quando você crescer e souber andar eu deixo dar uma volta, tá?
— Tá.


Saí em desabalada carreira para a venda do Miséria e Fome, chacoalhando a
caixa de engraxate.
Entrei de furacão, com medo que ele já fosse fechar.
35
— O senhor tem ainda daquele cigarro caro? Ele apanhou duas carteiras
quando viu o dinheiro na palma de minha mão.
— Isto não é para você, é, Zezé?
Uma voz por trás falou:
— Que idéia! Um pequeno desse tamanho!
Sem se virar ele contestou.
— Porque você não conhece esse freguês. Esse danado é capaz de tudo.
— É para Papai.
Sentia uma felicidade enorme rolando as carteiras na palma da mão.
— Essa ou essa?
— Você é quem sabe.
— Passei o dia trabalhando para comprar este presente de Natal para Papai.
— Verdade, Zezé? E o que ele te deu?
— Nada, coitado. Ele está ainda desempregado, o senhor sabe.
Ele ficou emocionado e ninguém falou no bar.
— Qual o senhor gostava mais se fosse o senhor?
— As duas são lindas. E qualquer pai gostaria de receber um presente desse
jeito.
— O senhor me embrulha essa, por favor.
Ele embrulhou mas estava meio esquisito quando me deu o pacotinho.
Parecia querer dizer uma coisa e não conseguia.
Dei o dinheiro e sorri.
— Obrigado, Zezé.
— Boas-festas para o senhor!…
Corri de novo até em casa.
A noite tinha chegado também. Havia a luz acesa do lampião apenas na
cozinha. Todos tinham saído, mas papai estava sentado na mesa olhando o vazio da
parede. Apoiava o rosto na palma da mão e o cotovelo na mesa.
— Papai.
— O que é, meu filho?
Não havia rancor nenhum em sua voz.
— Onde você andou o dia todo?
Mostrei a caixa de engraxar.
Coloquei a caixa no chão e meti a mão no bolso tirando o pacotinho.
— Veja, Papai, comprei uma coisa linda para o senhor.
Ele sorriu compreendendo o quanto custara aquilo.
— O senhor gosta? Era a mais bonita.
Ele abriu a carteira e cheirou o fumo, sorrindo, mas não conseguia dizer
nada.
— Fume um, Papai.
36
Fui até ao fogão apanhar um fósforo. Risquei um e aproximei do cigarro em
sua boca.
Me afastei para assistir a sua primeira tragada. E foi me dando uma coisa.
Joguei o fósforo apagado no chão. E senti que estava estourando. Rebentando todo
por dentro. Rebentando aquela dor tão grande que passara o dia ameaçando.
Olhei Papai. O seu rosto barbado, os seus olhos.
Só pude falar.
— Papai… Papai…
E a voz foi sendo consumida pelas lágrimas e soluços. Ele abriu os braços e
estreitou-me ternamente.
— Não chore, meu filho. Você vai ter muito que chorar pela vida, se
continuar um menino assim tão emotivo…
— Eu não queria, Papai… Eu não queria dizer… aquilo.
— Eu sei. Eu sei. Não fiquei zangado porque no fundo você tinha razão.
Me embalou, um pouco mais.
Depois levantou o meu rosto e enxugou-o com o pano de prato que estava
jogado perto.
— Assim é melhor.
Suspendi as minhas mãos e alisei o seu rosto. Passei os dedos de leve sobre
os seus olhos tentando colocá-los no lugar, sem aquela tela grande. Tinha medo que
se não o fizesse, aqueles olhos iriam me seguir à vida inteira.
— Vamos acabar o meu cigarro.
Ainda com a voz tolhida de emoção gaguejei.
— Sabe, Papai, quando o senhor quiser me bater nunca mais eu vou
reclamar… Pode me bater mesmo…
— Está bem. Está bem, Zezé.
Depositou a mim e o resto dos meus soluços no chão. Apanhou no armário
um prato.
— Glória guardou um pouco de salada de frutas para você.
Eu não conseguia engolir. Ele sentou-se, foi levando pequenas colheradas à
minha boca.
— Agora passou, não passou, meu filho?
Fiz que sim com a cabeça mas as primeiras colheres entravam na boca com
gosto salgado. O resto do meu choro que custava a passar.

Leave a Comment